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A Capital
foi um dos jornais onde o Cascais Jazz de 1971 terá tido mais repercussão. Sendo um dos diários não conotados com o regime, era também um dos jornais mais abertos à cultura. Significativo era o interessante suplemento – até do ponto de vista gráfico - «Literatura e Arte», que tinha como editora Maria Teresa Horta, e que contava como colaboradores Natália Correia, Maria Isabel Barreno, Ary dos Santos, José Saramago, António Gedeão, Alexandre O’Neill, Mário Cesariny e inúmeros outros; e ainda o sabatino Cena 7, dedicado ao cinema, à música e espectáculos.

O Cascais Jazz mereceu caixa de capa nas três edições de 20, 21 e 22 de Novembro, e largo destaque no corpo do jornal e no suplemento Cena 7. A maioria dos artigos não foram infelizmente assinados e apenas Fernando Cascais assina alguns artigos de fundo.

O Cascais Jazz surge logo a 1 de Outubro em notícia da conferência de imprensa, onde terão estado, além dos organizadores Luís Villas Boas, João Braga e Hugo Lourenço, os entusiasmados Manuel Jorge Veloso, Raul Calado e José Duarte. Em números seguintes A Capital escrevia sobre Phill Woods, Gordon Beck, Ornette Coleman e Dexter Gordon, os The Bridge, entrevistava Charlie Haden, antecipava o Cascais Jazz e o que iria tocar Miles Davis, e dedicava-lhe a capa do Cena 7 de 20 de Novembro.

Este Cena 7 dedicava ao Jazz oito páginas, com grandes fotos, e os artigos tinham como título «A vida de um povo pela música», «O Jazz em Portugal», «Quem vem a Cascais», «Guia do “Amador de Jazz português», e «Cronologia do Jazz» (este último assinado por Fernando Cascais).

O beijo também é “Jazz”
A Capital de 21 de Novembro continha uma chamada de capa com uma foto de Miles Davis, «O beijo também é “Jazz”», oferecendo-lhe página e meia com duas crónicas sobre a primeira noite do festival.

«Delírio (e algum sono) em Cascais» era o título da capa de 22, com uma foto de Dizzy Gillespie no meio da multidão. Lá dentro, de novo, mais de uma página dedicada ao festival em quatro artigos. Num primeiro, relatando a segunda noite, citava algumas frases da revelação do Jazz português João Ramos Jorge (o saxofonista dos The Bridge, que haveria de se tornar conhecido como Rão Kyao), e ainda de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira.

A sagrada campanha...
Noutro artigo, enfim («Há adeptos e adeptos...»), Villas Boas dava conta de um postal enviado ao Director do Pavilhão de Desportos de Cascais em que um tal cidadão Damião Simões Cid lamentava a autorização para a realização de um «festival de música de “Jazz”-batuque-americano-inglês que é apenas uma demonstração de ódio e propaganda contra a nossa música e o nosso folclore, que os seguintes idiotas-malfeitores procuram eliminar de Portugal». Como nota curiosa, o desvelado cidadão, dirigia-se, junto ao endereço, aos carteiros, rogando-lhe o «valioso auxílio na … sagrada campanha contra todos os malfeitores do “jazz”-batuque inimigos da música portuguesa, do … folclore».

Os textos d’A Capital era principalmente informativos, mas a notícia sobre a presença de Phil Woods de 26 de Outubro biografava o saxofonista e a European Rythm Machine, referindo as actuações e os discos gravados, revelando algum conhecimento. Artigo não assinado.

O mesmo para outra notícia do dia 27 para Gordon Beck (com alguns erros), a notícia de 9 de Novembro anunciava a chegada de Ornette Coleman e a possibilidade de Dexter Gordon ser acompanhado de uma secção rítmica nacional. Em 10 de Novembro o jornal anunciava, em artigo de três quartos de página, a abertura do festival com o grupo português «The Bridge», com entrevista com Kevin Hoidale. Em resposta ao jornalista, sobre a música Jazz como forma de protesto contra a discriminação dos negros nos EUA, Hoidale recusa para si esse atributo: «Para mim a música é um meio muito elevado de comunicação, que não deve conter violências ou aspectos negativos».

Entrevista a Charlie Haden
A entrevista a Charlie Haden foi relativamente vaga nas respostas (a censura também não autorizaria mais) mas, ao contrário de Hoidale ainda ramatou: «Cada vez mais os músicos e artistas nos Estados Unidos estão a expressar a realidade que os cerca todos os dias».

Miles Davis, um senhor
Em 18 de Novembro, mais de meia página para os preparativos do festival na inauguração do novo Pavilhão de Desportos de Cascais, e a 20 uma chamada de capa «Cascais – Aqui Jazz», na página 19 uma notícia com o título «o escol do “jazz” americano esta noite em Cascais» e dois subtítulos: «Miles Davis, um senhor» e «Ainda há bilhetes». O texto informava de como Miles Davis tinha exigido abrir o festival, que estava instalado num hotel de luxo no Estoril, vestia de branco, inacessível no meio de uma pequena corte que incluía um cabeleireiro, e que a bagagem tinha um excesso de dois mil quilos, incluindo um piano de quatrocentos quilos ( o que tinha obrigado a organização a desembolsar mais 30 contos. O artigo, com uma foto de Miles, rematava com declarações de João Braga sobre o orçamento do festival (mil contos) e alguns detalhes, como o facto de não haver polícias fardados no interior do recinto.

A vida de um povo pela música
O artigo em Cena 7 de 20 de Novembro «a vida de um povo pela música» pretendia «dar ao leitor alguma informação sobre a evolução do «jazz» nos Estados Unidos e a sua relação com a vida dos negros, bem como uma panorâmica, ainda que reduzida, do que na mesma matéria se fez em Portugal».

O Jazz em Portugal
Num segundo artigo de página, o autor historiava o Jazz em Portugal, desde o primeiro concerto, em 1941, de Willie Davis no Casino Estoril, a primeira jam session, organizada por estudantes do IST e o início do programa de rádio de Luis Villas Boas em 1945 e a fundação do Hot Club em 1950 - 1951, as jam sessions do Café Chave d’Ouro em 1948 (onde chegaria a tocar Don Byas), a abertura do clube (o Hot Club teria chegado a ter 1000 sócios, tendo à altura apenas 100), o concerto de Sidney Bechet no Monumental em 1954 e, nos dezoito anos seguintes, Count Basie com Joe Williams, Bill Coleman, Dexter Gordon (num festival de Jazz em Coimbra, a Orquestra de Quincy Jones, Duke Ellington e Ella Fitzgerald, o Modern Jazz Quartet na Fundação Gulbenkian, Gerry Mulligan, Stan Getz no Porto, e ainda a fundação do Clube Universitário de Jazz (CUJ) de curta vida, em 1958, e em 1957, a formação do Quarteto do Hot Club (1957-1963) – com Manuel Jorge Veloso na bateria, Justiniano Canelhas no piano, Bernardo Moreira no contrabaixo e Jean-Pierre Gebler no saxofone barítono -, que chegaria a tocar na Bélgica, no Festival de Jazz de Comblain-la-Tour.

Guia do “amador” de jazz português
Num artigo complementar o Cena 7 oferecia um «Guia do “amador” de jazz português», onde informava onde podia ouvir Jazz em Portugal: no Hot Club e esporadicamente em sessões fonográficas promovidas por Raul Calado e José Duarte, por todo o país; na rádio: Rádio Ranascença, em dois apontamentos diários e um semanal , por José Duarte; também diariamente no Rádio Clube Português, num programa de Manuel Jorge Veloso; na Emissora Nacional, duas vezes por semana, por Raul Calado; e na RTP, num programa regular de Manuel Jorge Veloso.

Ainda no mesmo artigo, o Cena 7 informava dos livros traduzidos para português: o «Jazz» de Rex Harris, «Os Mestres do Jazz» por Lucien Malson, a «História do Verdadeiro Jazz» do director do Hot Club de France, Hugues Panassié, entre outros, e referia-se ainda aos boletins do CUJ e o «Jazz e o ZIP», efémero boletim promovido por Zé Duarte em colaboração com o programa de televisão Zip-Zip. E discos: «Gravados em Portugal não há».

Quem vem a Cascais
No topo da mesma página uma caixa: «Quem vem a Cascais», com destaque para Dizzie Gillespie, Thelonious Monk, Miles Davis, Ornette Coleman e Phil Woods.

Cronologia do Jazz
A «Cronologia do Jazz» de Fernando Cascais ocupava duas páginas e contava a História do Jazz desde os tempos dos escravos nos campos do algodão – as worksongs, o gospel e o blues, aos primórdios no início do século, ao «O “Jazz” actual como testemunha», com ênfase na faceta social e política que terminava com a evolução do free-jazz.

Houve “jazz” em Cascais
A capa de A Capital de 21 de Novembro continha em destaque uma foto de Miles Davis com a legenda a vermelho «O beijo também é «jazz» e uma chamada para o interior com dois artigos: «Houve “jazz” em Cascais», e «Davis e Coleman visto por olhos franceses», este último uma entrevista com Jean-Louis Ginibre, editor da Lui francesa e cronista e produtor de discos de Jazz.

Amália, Zeca Afonso e Balsemão
O primeiro texto dava conta do que se tinha passado na primeira noite em Cascais. Num artigo entusiasmado o jornalista reflectia sobre a juventude que ocupava maioritariamente os dez mil lugares do pavilhão, e da música «estranha e controversa» de Miles Davis, a que ele se tinha rendido, destacando ainda Gary Bartz e Keith Jarrett; e ainda ao free-jazz de Ornette Coleman, e ao longo intervalo que mediou os dois concertos. Entre a assistência, relatava, encontrava-se Amália Rodrigues, Zeca Afonso, Jorge Peixinho, o deputado Francisco Pinto Balsemão e o Director da Cultura e Espectáculos, dr. Caetano de Carvalho. E terminava com uma curta referência aos concertos dos The Bridge («nem sempre bem recebida pelo público»), onde pontificava o saxofone de Ramos Jorge, e a Dexter Gordon e o seu quarteto português.

Cinco minutos de desordem
Como nota curiosa, a última foto do artigo tinha uma enigmática legenda «Foram cinco minutos apenas em que a desordem quis vencer o som que surgia do palco…»; provavelmente uma referência obscura à intervenção de Charlie Haden, quando dedicou a composição «Song for Che» aos movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné. Mas a mensagem passaria.

Delírio (e algum sono) em Cascais
Quase metade da capa do jornal da segunda-feira 22 tinha um destaque para o Cascais Jazz: «Delírio (e algum sono) em Cascais», com uma foto de Dizzy Gillespie no meio da multidão.

O texto do interior dava conta do êxito da actuação dos Giants of Jazz que encerrariam o festival, um pouco mais cedo que o dia anterior, já depois das duas. Um solo formidável de Art Blakey obrigaria os Giants a regressar para um encore, com o público a invadir o palco. Antes tinha tocado a European Rhythm Machine de Phil Woods que se tinha imposto, apesar da maior dificuldade (e modernidade) da música. O saxofone e a bateria de Daniel Humair tinham contagiado o público, obrigando o quarteto a regressar ao palco.

O artigo completava-se com uma curta entrevista a Ramos Jorge (o Rão) e a Adriano Correia de Oliveira e José Afonso, algo cépticos quanto à música de Miles Davis e, naturalmente, apologistas do free de Ornette.

«dói-me tudo e mais alguma coisa, até o coração»
Num outro curto texto, Manuel Jorge Veloso, que tinha acompanhado Dexter Gordon à bateria, confessava o seu entusiasmo: «Tão importante o que aqui se passou que, sinceramente, neste momento dói-me tudo e mais alguma coisa, até o coração».

E na mesma página Villas Boas comemorava o sucesso do festival e anunciava já estar a pensar no Cascais Jazz de 1972 que, como sabemos, viria a acontecer.

O 1.º festival de «jazz»
Enfim, no suplemento de A Capital de 27 de Novembro, Cena 7, um último artigo de duas páginas «O 1.º festival de «jazz»), com uma reportagem fotográfica com imagens da multidão no pavilhão, de Ornette Coleman, de Dizzy Gillespie, Dexter Gordon, Art Blakey, Manuel Jorge Veloso, e ainda uma foto de Miles Davis com Kevin Hoidale, Dexter Gordon e Villas Boas.

A Capital foi um dos jornais que mais destaque deu ao Cascais Jazz de 1971, significativo também da sua importância. Numa época em que a vida cultural nacional era um marasmo, e se sentiam os ecos da cultura pop, com o que lhe estava associado de contestação aos valores morais e políticos (anti-racistas e anti-guerra), a adesão da juventude foi significativa e A Capital compreendia-o. Informando e formando - os artigos de fundo eram relevantes -, o Jazz ganhava também uma importância que deixaria lastro para as gerações vindouras.

Sobre Jazz escreveram n'A Capital:
Fernando Cascais
(outros artigos «jornalísticos» não assinados)